O homem que se agarrou a um cachucho para não morrer no mar (1926).
Para a navegação local entre-Espichel-e-Sines, 1926 decorreu da forma habitual - com inúmeros acidentes marítimos.
Ora vejamos: a 16 de Janeiro de 1926, afundou-se, por alturas da Baleeira Nova e a 6 milhas da terra, o rebocador português Norte, por ter aberto água com o mau tempo.
A 21 de Janeiro de 1926, naufragou no mar do Zimbral o buque S.3 G.617 Elmano, pertencente ao cerco Natal, abalroado que foi pelo barco a motor Senhor Jesus das Chagas, em consequência da falta de luzes e vigias regulamentares no referido buque.
A 11 de Fevereiro virou-se junto ao cais da mina de cimento da Rasca, Outão, a canoa S. 429 Cana Verde. Houve dois mortos.
A 9 de Maio, afunda-se a canoa S. 412, cortada ao meio pelo barco de arrasto Boa Esperança. Morrem cinco pessoas.
A 20 de mesmo mês, adornou sob forte rajada de vento, quando passava junto da mesma torre do Outão, a embarcação de pesca Vida Nova. Joaquim de Souza Matias Júnior - de 18 anos, que não era inscrito marítimo e andava a bordo ilegalmente - caiu ao mar e morreu.
A 18 de Outubro naufragou na costa da Galé o caíque português Rápido, com temporal que soprava de sudoeste.
A 27 do mesmo mês, por ter água aberta naufragou a sudeste do cabo Espichel a laita Novale, quando seguia com um carregamento de carvão a reboque do rebocador Record.
A 18 de Novembro foi abandonado ao largo do Espichel o iate nº B103 Maria do Céu, por ter aberto água, ter avarias no velame e ter ficado com as bombas de esgoto encravadas, no seio de um forte temporal que soprava de noroeste, com saltos ao sudoeste. O iate saíra de Tavira com destino ao Porto, carregando sal a granel.
No mesmo dia e no mesmo temporal, virou-se, perto da costa, em frente à Comporta, a canoa S. 675 As Dois Mários. Houve um morto.
A 20, vai ao fundo o lugre espanhol Pachino, na baía de Sesimbra.
Finalmente, a 17 de Dezembro, devido a violento golpe de mar levantado pelo temporal que então soprava, vira-se no Canal da Amélia, no rio Sado, a canoa S. 409 Previdente.
Mas olhemos com mais detalhe para o acidente com a S412 e vejamos as potencialidades que uma boa investigação nos abre...
A canoa à vela S412 era uma "canoa das grandes", capaz de levar 250 a 260 canastras. Era empregue na pesca a anzol no alto, sendo propriedade do setubalense Joaquim Chicharro Quatro Olhos.
Era seu arrais Manuel José do Couto, de 68 anos, pescador natural da Fuzeta que vivia há algumas décadas em Setúbal, onde tinha filhos, netos e bisnetos.
A canoa saíra do porto de Setúbal na sexta, dia 7 de Maio de 1926, devendo retornar àquele porto sadino no dia 10, ao meio dia. Nunca lá chegaria, como já sabemos e como veremos mais adiante, com maior pormenor.
À uma da manhã do dia 10, fundeada a canoa a cinco milhas a oeste do cabo Espichel, estava toda a companha de seis homens a iscar os anzóis. No alto de um varapau bruxuleava a luz de petróleo do costume.
Ao longe, escuta-se um motor por entre a neblina.
Também a cinco milhas a oeste do cabo Espichel, o barco de pesca de arrasto Boa Esperança, de 300 toneladas e 18 tripulantes, marchava à vante por entre o nevoeiro e a noite sem luar. Havia seis dias já que o barco da firma Sá Viana & Costa Correia tinha largado de Vila Nova de Milfontes, varrendo o fundo do mar de norte para sul e de sul para norte.
Naquela noite, 10 de Maio, batia no relógio de bordo a uma da manhã. De quarto, na ponte de comando, estava ao leme Angelino Francisco Bernardino, de vigia Luís António Bizarro.
A bordo da canoa, os seis homens viram uma proa em marcha, a poucos metros de distância. Gritaram, fizeram barulho, mas a marcha continuava, surda.
Ouve-se um choque enorme e a proa do navio corta a canoa em duas. Fundeada e lastrada com pedra, a canoa afunda-se a pique.
Manuel José do Couto agarra-se a um bocado do barco, que se lhe escapa por entre os dedos. Depois, agarra-se a um cachucho, pensando erradamente que era madeira. Finalmente, deita a mão a uma escotilha em madeira.
A bordo do Boa Esperança, os homens de vigia sentem um choque à proa e escutam gritos aflitivos. Olhando a bombordo, Luís Bizarro divisa no escuro um velhote agarrado a pedaço de madeira.
Param-se as máquinas, chama-se à ponte o comandante caxineiro Joaquim João Marques, faz-se arriar um bote e os dois salva-vidas do Boa Esperança e atira-se ao mar um barril.
Desesperado, o arrais consegue por fim vogar até ao navio que parara, finalmente, a sua marcha. É pescado das águas pelo contramestre do Boa Esperança, Manuel dos Santos Redondo.
No convés do navio que primeiro o afundara e depois o salvara, o arrais constata que é o único sobrevivente da canoa. As buscas levadas a cabo pela tripulação do Boa Esperança duram 7 horas. Mais ninguém aparece, vivo ou morto.
Afogam-se Augusto Gouveia, de 53 anos, de Olhão; José do Espírito Santo, de 60 anos; António, um rapaz de 13 anos, ambos da Fuzeta; e o filho e o neto do arrais, Francisco do Couto, de 30 anos, e Américo do Couto, de 13 anos.
Coisas do mar, que ora tanto dá a ganhar a vida a uma família, como a leva consigo.