Caça ao tesouro do Holandês na ilha do Porto Santo (1724)

08-10-2018


A 31 de Outubro de 1724, o navio Slot ter Hooge, da câmara da Zeelândia da Companhia Holandesa das Índias Orientais - Vereenigde Oostindische Compagnie Middelburg Zeeland - partia do porto de Amsterdão com destino a Batavia, na actual Indonésia.

A bordo levava, para além dos mantimentos e da carga ordinária, cerca de três toneladas de prata, em lingote e amoedada, prata essa destinada a adquirir as especiarias e as porcelanas asiáticas que caracterizavam a torna-viagem das naus holandesas.

Infelizmente, o capitão Steven Boghoute teve uma nítida falta de sorte com o tempo que encontrou ao largo da costa portuguesa, com a borrasca invernal a fazer derivar o navio até às paragens da ilha do Porto Santo, no arquipélago da Madeira. 

E foi nessa ilha, mais precisamente na enseada do Porto do Guilherme, que o navio holandês de 850 toneladas naufragou, a 19 de Novembro do mesmo ano. 

Dos 254 tripulantes e passageiros a bordo, apenas se salvaram 33.

Perante o relatório produzido pelo primeiro tenente do navio, Baartel Taerlinck, o cônsul holandês em Lisboa decide proceder a uma tentativa de salvamento do tesouro afundado. 

Para tal, contrata em Inglaterra um especialista em salvamento subaquático, John Lethbridge, que receberia, pela tarefa, 10 libras esterlinas por mês mais despesas, para além de um bónus a ser pago de acordo com a generosidade dos contratadores holandeses.

Em 1725, Lethbridge recuperou 349 das 1500 barras de prata bem como dois canhões. No ano seguinte, recuperou mais de metade do tesouro perdido. 

Cinco anos mais tarde, em 1733, uma última expedição tentou mais uma vez a sua sorte, conseguindo recolher somente uma pequena quantidade de moedas. 

Dos salvadores de então, restou apenas uma recordação sob a forma de uma taça gravada com a imagem da ilha do Porto Santo e a baía onde o Slot ter Hooge se perdera - 250 anos depois, essa taça levaria um caçador de tesouros belga ao Porto Santo.

A expedição de um belga

A 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos o país e as ilhas atlânticas no caos. Conhecendo há anos a localização do naufrágio graças à caneca acima referida, uma equipa belga agarra a ocasião pelos cabelos e voa até à Madeira em Maio de 1974

Saindo de barco a partir do Funchal, Robert Sténuit, Louis Gorsse, Alain Fink, Michel Gangloff e Roger Perquin - financiados pela National Geographic Magazine e pela Comex, uma empresa de mergulho de Marselha - chegam ao Porto Santo, com armas e bagagens, no intuito de procederem à recuperação do tesouro remanescente do Slot ter Hooge.

Robert Sténuit já não era novo nestas andanças. Com efeito, este belga - que tinha iniciado em 1954, na baía de Vigo, a sua primeira, mas infrutífera, caça ao tesouro - liderara em Junho de 1967 a expedição que encontrara o Girona, um navio da Invencível Armada afundado em 1588 ao largo da Irlanda.

Depois deste bem sucedido mergulho no passado, Sténuit especializou-se em navios holandeses e trabalhou, antes da sua expedição ao Porto Santo, nos naufrágios do Wendela e do Lastdrager, ambos afundados nas ilhas Shetland.

Logo no primeiro mergulho no local indicado pela caneca, a enseada do Guilherme, Sténuit descobriu a âncora do navio naufragado bem como dois canhões de ferro e material disperso. Infelizmente para ele, toneladas e toneladas de areia cobriam os materiais mais pesados. No entanto, graças aos bons ofícios de alguns conhecidos madeirenses, rapidamente a equipa se viu dotada de um compressor de ar associado a uma sugadora.

Em Agosto, os mergulhadores encontram a primeira barra de prata, acontecimento prontamente festejado com champanhe. 

Já com uma cratera de três metros de profundidade aberta, surge uma concreção composta por 25 barras de prata e depois, para grande gáudio da equipa de caçadores de tesouros, aparece um amontoado de barras de prata, ainda com o formato da caixa que as continha.

Ladrão que rouba ladrão...

Infelizmente para Sténuit, um período de mau tempo impediu a recuperação das centenas de barras de prata. Quando lá voltou, descobriu que a arca tinha sido roubada por mergulhadores madeirenses.

Depois de algumas peripécias rocambolescas, a equipa belga conseguiu recuperar o tesouro, para depois o ver sequestrado pelas autoridades portuguesas que, finalmente, se tinham apercebido do que se estava a passar mesmo debaixo dos seus narizes. 

Para além da prata, o Governo português confiscou também todos os artefactos recuperados pela equipa entre os quais se encontravam instrumentos de navegação, fragmentos de cerâmica, material cirúrgico de bordo e outros objectos utilitários da vida a bordo de um navio do século XVIII.

Sténuit recorreu então ao Tribunal Internacional de Haia, no sentido de recuperar o material confiscado. 

Infelizmente para Portugal, a Holanda tinha transferido para o seu Governo todos os direitos da extinta Companhia Holandesa das Índias Orientais. Ao abrigo desta titularidade, os Países-Baixos tinham celebrado um contrato com Robert Sténuit, em que este se comprometia a ceder ao Governo holandês 25% do valor recuperado.

Com base neste contrato, o Tribunal Internacional condenou o Estado Português a devolver à equipa belga os objectos confiscados, o que veio a acontecer em 1981, à revelia da legislação vigente na altura, o famoso decreto-lei 416/70, que declarava a titularidade do Governo português a todos os naufrágios ocorridos em águas nacionais.

Com base no ocorrido em Porto Santo, em 1974, e na Terceira, em 1972, o Professor Arquitecto Lixa Filgueiras elaborou em 1976, sob a tutela da Secretaria de Estado da Cultura, um relatório que se veio a revelar fundamental para a proibição posterior de quaisquer actividades de caça ao tesouro nos mares portugueses. 

Deste relatório resultou, assim, uma alteração legislativa ao decreto-lei 416/70, o que veio tornar a vida mais difícil para os caçadores de tesouros, pelo menos até 1993, data da publicação do famigerado decreto-lei 289/93 que veio a escancarar as portas dos naufrágios portugueses às empresas de caça ao tesouro.

Quanto ao Slot ter Hooge, parece que o nome dava azar. 

Em 1732, um segundo Slot ter Hooge, também da VOC, naufraga igualmente numa ilha portuguesa, desta vez na do Maio, em Cabo Verde. 

Adivinhem quem foi contratado para, também ali, mergulhar e salvar o tesouro em prata...